A Arte de dominar os cães…...e outras tretas que nos fazem querer acreditar.

A Arte de dominar os cães…...e outras tretas que nos fazem querer acreditar.
O primeiro ponto de partida desta reflexão surge em forma de pergunta: deve ser objetivo nosso pretender dominar os nossos cães? Pois bem, eu acho que não. Como não devemos querer dominar o que quer que seja.
O conceito de dominar, aplicado às interações ou relações intra e inter-especie, pressupõem a existência de um dominador e de um dominado. Tudo muito bem, se na maioria destas interações, isto se desenrolasse de uma forma natural e apenas como estratégia de resolução de determinada situação ou aquisição de recursos valiosos – esta forma de relacionamento encontra-se presente em qualquer área do mundo natural e é uma estratégia biológica de evolução e de sobrevivência.
O problema surge, quando esta relação se dá de uma forma não voluntária para uma das partes e prolongada no tempo, e como estratégia principal. Vemos isso no mundo humano e das mais variadas formas (os níveis que atinge no mundo virtual é assustadora), no mundo animal no geral e no que nos interessa para esta reflexão, na relação Homem – Cão.
Durante anos, se propagou a ideia de que para sermos donos responsáveis e para termos cães “controlados”, nós humanos temos o dever de “dominar” o cão. Atrás desta ideia (primitiva e simplista a meu ver) vem a crença de que os cães têm de se subjugar a nós, obedecer sem excepções e no fundo, deixar de ter vontade própria (e até necessidades próprias). Esta foi a ideia predominante no mundo do treino dos cães e também, infelizmente, nas nossas casas, famílias, sociedade, etc. E ainda hoje é, mas estamos em mudanças, o que me deixa alguma paz de espírito e esperança (em relação aos cães, porque entre humanos, vamos de mal a pior).
Analisando esta premissa, resta-me concluir, que ela representa uma perspetiva puramente antropocêntrica da realidade, do mundo e da nossa relação com o mundo natural, seja ele a Natureza e o Planeta Terra no geral, seja a nossa relação com os animais (domésticos e não domésticos) . Nós humanos, somos o animal superior e todos os outros se devem subjugar a nós. Esta é a ideia subjacente a quem defende tais ideais de dominância e de superioridade – e isto é observável em pequenas afirmações e atitudes, umas mais evidentes e outras mais subtis. E esta visão faz sentido? Para muitos faz, infelizmente. E são esses os responsáveis pelo atual estado do Planeta, pelo facto de nas últimas décadas se terem levado à extinção centenas de espécies, se estarem a esgotar os recursos naturais da Terra e da sociedade humana se estar, literalmente a destruir aos poucos, através de guerras, conflitos, fome, corrupção, ganância…. E o mais curioso é que todas estas atrocidades estão a ser, conscientemente cometidas pelo auto-proclamado mais superior dos seres: o Homem.
Estarei eu a dispersar do assunto inicial? A uma primeira vista poderá parecer que sim, mas a beleza e a complexidade do mundo (e tudo aquilo que dele faz parte) é haver um “padrão que liga” (Gregory Bateson) em que no fundo, tudo está interligado e tudo tem consequências a níveis que jamais imaginamos – teoria do caos (muito interessante para quem tiver curiosidade de aprofundar).
Vejamos de que forma tudo isto está relacionado e voltando aos cães, claro. A evolução do cão iniciou-se, segundos os últimos estudos, há cerca de 80 mil anos atrás e comprovou-se também, que esta evolução se deu em paralelo, com a própria evolução dos primeiros sistemas organizados humanos (famílias, clãs, aldeias, etc). Mas o mais interessante, é que até há pouco tempo (mas já lá vai mais de um século, daí custar a acreditar que tantas pessoas pensem com um século de atraso em relação aos cães…), acreditava-se que os primeiros lobos e posteriormente cães, foram dominados e domesticados pelo Homem, ou seja, os primeiros não tiveram escolha e os segundos, com todo o seu domínio e superioridade teriam conseguido obter o que queriam. Pois bem, sabe-se hoje, que isto está longe de ser verdade e que não faz qualquer sentido. Aquilo que aconteceu é que gradualmente, os lobos e cães foram-se aproximando dos grupos de humanos, por uma questão de necessidade aliada a curiosidade (colectores de restos alimentares), mas que gradualmente se desenvolveu uma relação de cooperação entre ambas as espécies. E aqui é que reside a chave de algo tão simples e que se esqueceu ao longo dos tempos – cooperação. Estamos a perder a capacidade de cooperar com o mundo natural e em vez disso, entramos em constante competição com o mesmo, em que o humano domina e tudo aquilo que faz parte do mundo natural, é dominado. Sejam os oceanos e as florestas, sejam os animais que caçamos e produzimos e de forma desenfreada consumimos, seja na nossa relação com os nossos animais domésticos e em última instância, entre nós humanos. Mas esta última parte deixarei para outro tipo de reflexões, porque se entramos no âmbito da maldade humana e do potencial da mesma, aí é que a discussão exige muitas e muitas divagações.
O âmago da questão é que ao longo dos tempos, perdemos esta capacidade de cooperar, seja uns com os outros, seja entre espécies e na própria relação com os recursos naturais no geral.
Voltando ao título deste texto: Treinar / Educar cães é uma arte?...Não, não é. É antes uma ciência. Mas como qualquer ciência que envolve algo que jamais poderá ser inteiramente objetivo, é uma ciência particular e sensível, que envolve alguma intuição e acima de tudo, disponibilidade para compreender todas as partes envolvidas, daí que extremismos e fundamentalismos se tornam perigosos e um mar de ilusões. E por vezes, recorrermos à mais simples das capacidades humanas é o suficiente - racionalidade.
Palavras (e acções) como cooperação, empatia e ética são fundamentais. Quando falo de intuição, não me refiro a nada esotérico, espiritual ou new age. Eu sou Psicóloga, sou uma apaixonada pelo ser humano e pela complexidade inerente à sua natureza, mas também sei e defendo que alguma objetividade e imparcialidade é crucial e jamais devemos misturar conceitos que apenas baralham o receptor e reproduzem uma visão romantizada da realidade e por tal, enviesada. Intuição é termos a capacidade de “escutar” o que a outra parte nos tenta dizer sem ser de forma direta – e isto é tanto importante quando lidamos com animais, assim como quando lidamos com pessoas.
Eu já quis e tentei durante algum tempo “dominar” a minha cadela, a Kaya – e por ter cometido esse erro no passado, hoje aconselho a ninguém o fazer, porque ao querer dominar a natureza de outro, não a estamos a respeitar. E eu quero respeitar a Kaya, eu quero que na relação com ela, ela seja respeitada, assim como ela sempre me respeitou e me segue, quando não existe o tal estímulo que a deixa descontrolada – os cães. Eu tenho uma cadela agressiva com cães e ao longo destes 7 anos da nossa relação, nunca consegui “dominar” esta agressividade, porque também deixou de fazer sentido para mim – embora durante alguns tempos tenha tido esta ilusão e foi nessa ilusão que acidentes aconteceram (nenhum deles grave) e foi com esses acidentes que eu aprendi que existem limitações naquilo que conseguimos dos nossos cães e que eles podem, nunca corresponder ao que idealizamos deles. Durante este tempo que acreditava ter dominado a Kaya, fui-me apercebendo que ela se tornava cada vez mais imprevisível, daí a ilusão dos treinos baseados em castigos físicos e as consequências dos mesmos. E hoje, por experiência própria, o desaconselho fortemente.
Castigar fisicamente um cão em nome do treino, não é cooperar com ele e muito menos, é respeitar aquilo que ele é, e quem o continua a fazer nos dias de hoje, tem de parar para pensar, em que se baseia a relação que tem com os cães – seja Veterinário ou Treinador, seja o groomer ou até o próprio dono.
Quem continua a acreditar que os nossos cães se devem subjugar à nossa vontade, tem de rever prioridades, princípios e acima de tudo, reflectir: eu quero que a relação que tenho com o meu cão se baseie em respeito e cooperação, ou em medo, coercividade e subjugação? Muitos confundem medo com respeito…e são conceitos, tão, mas tão diferentes que confundi-los se torna perigoso, para todos os envolvidos – cães e pessoas.
Para quem ler este texto e ainda manter a ideia de que devemos dominar os cães, vou deixar um conselho: comprem / dediquem-se a um robot. Da forma que a tecnologia tem evoluído, não tarda muito temos robots a comer e a defecar e treiná-lo é muito fácil; basta programá-lo à imagem do que queremos – não têm nada a perder e com os cães perde-se muito tempo.


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