O Pitbull - qual a origem do mito e do preconceito?

O Pitbull - qual a origem do mito e do preconceito?
Decidi escrever este artigo, em primeiro lugar, por ser uma grande amante da raça, mas em segundo e principalmente, porque abracei como missão esclarecer as pessoas que se cruzam no meu caminho, dada tanta ignorância, preconceito e confusão no que se refere à visão social que existe sobre os Pitbulls. E quando digo esclarecer, implica eu também aprender, aprofundar e reflectir sobre tanta coisa que esta temática implica.
Como é possível que no espaço de dois séculos, esta raça tenha passado de “cão-ama” (nanny dog), para “cão-assassino”? Este será um assunto de discussão a nível sociológico, histórico, psicológico e até económico. Por aqui se verá que não é um assunto simples de se abordar, mas que merece toda a nossa atenção, sensatez e principalmente, objectividade.
Como amante e (minimamente) conhecedora da raça, continua-me a suscitar bastante confusão e revolta, assistir a tanto estigma e preconceito. A origem e evolução histórica desta raça é extremamente elucidativa e torna-se muito incoerente assistirmos a tantas (des)informações sobre ela que são tudo menos esclarecedoras, alimentando uma eterna ignorância constituída por um misto de ausência completa de conhecimento objetivo e emoções baralhadas e ofuscadas pelo que a comunicação social transmite e as massas insistem em absorver.
As consequências deste estigma chegam a ser tão graves que ultrapassam o limiar da ignorância para actos profundamente cruéis e persecutórios contra os cães desta raça. Não me refiro, de todo e apenas às lutas de cães, essas são apenas uma ínfima parte da situação. Nos Estados Unidos da América têm surgido frequentemente histórias de negligência, abandono e mau-trato físico grave a estes cães, mau-trato esse que aparece como uma qualquer manifestação macabra da mais cruel e maldosa de todas as raças: o ser humano. Notícias de exemplares encontrados alvejados com tiros de caçadeiras, machadadas no crânio e, passo a citar o requinte de malvadez: “encontrado Pitbull com queimaduras de primeiro grau, devido a canas de fogo-de-artifício espetadas no dorso”. Curiosamente e feliz ou infelizmente, conforme a perspectiva, na grande maioria destes exemplos, os cães sobrevivem…
Como podemos explicar que as características desta raça tenham sido tão fortemente deturpadas nas últimas décadas, deturpação essa que parece ultrapassar a realidade sobre este tipo de cães e que leve a este tipo de atos tão cruéis e macabros?
Características como lealdade, tenacidade, perseverança, instinto protetor, resistência física, agilidade, alta capacidade de trabalho, motivação, etc têm sido erroneamente substituídas por apenas uma, que aos olhos dos mais tolos, resume o temperamento destes cães: agressividade. Esta mesma caraterística tem sido aplicada aos mais variados contextos e sempre focalizando-a na relação para com os humanos. Pois esta é das maiores deturpações e confusões que se têm vindo a propagar; segundo estudos estatísticos nos E.U.A, existe maior probabilidade de uma pessoa ser atingida por um relâmpago do que ser atacada por um Pitbull. Os ataques a humanos existem sim, mas são uma aberração, uma anormalidade dentro daquele que é o seu comportamento natural. Estes cães são denotados por uma grande afinidade e estabelecimento de uma relação profunda com os seres humanos, principalmente para com as pessoas significativas da sua vida (família). Não são de todo, a melhor escolha para os que procuram cães de guarda por ser extremamente amigável mesmo com desconhecidos, pelo que se constata que o comportamento agressivo para com o ser humano não é característico da raça. Possuem um enorme instinto protetor para com as crianças e apesar de cães robustos e extremamente fortes, conseguem dosear a dose de energia que aplicam quando em interacção com uma criança. Daí serem óptimos cães de Terapia Assistida (o melhor na opinião do Veterinário e Treinador de cães norte-americano Ian Dunbar).
A cobertura sensacionalista da comunicação social, nos últimos anos, sobre ataques deste tipo de cães a humanos, tem contribuído para a transmissão e generalização de que se tratam de cães agressivos, perigosos e que devem ser completamente banidos. Infelizmente não se trata de um problema nacional, uma vez que são 12 os países que baniram por completo a raça, proibindo a importação de exemplares e diminuindo ao máximo a tolerância para qualquer situação que aconteça. Existem mesmo países que iniciaram uma espécie de perseguição a estes cães, retirando-os de famílias para abate, mesmo sem a existência de qualquer incidente (exemplo da Dinamarca). E quando digo perseguição, refiro-me a entrarem dentro da nossa casa e literalmente tirarem o cão da família para o abater de seguida, simplesmente por ter nascido daquela raça.
A confusão generalizada surge porque se acredita que estes ataques são a regra e não a excepção e porque, num número de casos significativo terminam com ferimentos muito graves ou mesmo em morte. Sabe-se que existem outras raças que em termos percentuais atacam com muito mais frequência, raças essas que a maioria ficaria estupefacta ao ouvi-la: labradores, cockers, chiuahas….atacam com muito mais frequência do que propriamente os Pitbulls. Então será justo intitular estes cães de “cães assassinos” quando segundo dados científicos, não são de todo animais agressivos para humanos?! Segundo resultados da American Temperament Test Society (ATTS), instituição que estuda e avalia o temperamento e comportamento de milhares de cães de diversas raças, diante de situações variadas, pessoas diferentes, o seu equilíbrio, capacidade de avaliação e reação, instinto de proteção e agressividade, o American Pit Bull Terrier teve um dos maiores índices de aprovação, estando entre os mais dóceis e menos propensos a atacarem uma pessoa, ficando inclusive a frente de Collies, Cockers, Pastores Alemães, Golden Retrievers e Dálmatas.
A agressividade destes cães é geneticamente focalizada para outros cães e animais e não para humanos, dado o seu forte historial de lutas de cães e instinto predatório bastante evidente. A seleção artificial ao longo de décadas incluiu cruzamentos de raças para um único fim: ser um cão resistente para ter bons resultados nas lutas de animais (século XIX, as denominadas Bull Baiting- Cão versus Touro). Os criadores desta raça, ao longo dos anos foram ainda mais longe, para garantir que os exemplares que criavam não tinham agressividade com humanos. Todos os que revelassem esta agressividade direccionada a humanos (manbiters) eram imediatamente eliminados das ninhadas, como forma de assegurar e prevenir acidentes no futuro. Diga-se de passagem que ter um cão no ringue a lutar com outro cão e na altura de os separar redireccionar essa agressividade para o tratador não seria algo muito útil (entre outras coisas). O Pitbull como é hoje conhecido, resultou de várias décadas desta mesma selecção artificial pelo ser humano para atingir o seu fim; o início deste processo deu-se algures no século 18 em Inglaterra e a característica que mais surge na literatura para caracterizar estes animais sempre foi: lealdade para com os humanos e combatividade (gameness) para com outros animais. Até na designação da raça se assiste a informações erradas, uma vez que o termo Pitbull é recorrentemente descrito como englobando não uma, mas um conjunto de “sub-raças”, que são elas: American Bully, American Staffordshire Terrier, Staffordshire Bull Terrier e American Pit Bull Terrier. O que é completamente errado, o termo Pitbull, corretamente aplicado seria apenas a exemplares da raça American Pitbull Terrier.
Além de toda esta confusão, existem milhentos outros cruzamentos que por terem fisionomia semelhante são apelidados de Pitbull, então se for responsável por algum ataque ou situação menos feliz, certamente que será um Pitbull, até de pêlo comprido encontramos alguns - um pouco de sarcasmo é inevitável ao se discutir este assunto...
Então o porquê de alguns ataques a humanos? Em qualquer espécie, seja animal, vegetal, etc, existem manifestações comportamentais que se desviam da regra e estes ataques são isso mesmo - excepções. No entanto, não podemos descurar o contexto em que ocorrem os ataques, que são esses pormenores que a maioria das vezes são esquecidos e aquilo que ressalta e se sobrevaloriza é o resultado do ataque. Os ferimentos graves acontecem, em primeiro lugar, porque se tratam de cães extremamente resistentes, fortes, mas principalmente pela sua persistência que quando focalizados num determinado objectivo, segue-o até o finalizar ou ser interrompido. Aquilo que se desvaloriza sempre, são as circunstâncias em que ocorrem os ataques, o estilo de vida e antecedentes do cão e donos, o elemento precipitador do ataque, etc. Todos estes fatores devem ser analisados ao pormenor e se assim o forem, conclui-se que nenhum cão, seja Pitbull ou não, ataca simplesmente por atacar. E de quem será a responsabilidade destas situações? Inteiramente do ser humano! Seja por negligência de uma qualquer necessidade básica, por um comportamento precipitante, por irresponsabilidade e imprudência; em primeira e última instância, nós os humanos somos responsáveis por estes eventos. Em primeiro lugar porque temos a obrigação e dever quase evolucionário de ajudar os cães a viverem integrados na nossa sociedade e para isso, a nossa ajuda é fundamental. E muitas vezes falhamos sem responsabilidade directa, mas muitas outras vezes negligenciamos certos aspectos, nomeadamente no conhecimento que temos do nosso cão, das suas potencialidades e limitações.
O papel dos donos destes cães e de qualquer cão deverá ser satisfazer as suas necessidades, que não passam apenas pelo alimento e abrigo; o instinto de liberdade deve ser satisfeito e a socialização com outros cães, humanos e os mais variados estímulos e contextos, além de necessidade, constitui um elemento crucial para um desenvolvimento e vivências equilibradas e seguras.
Existem alguns argumentos que são utilizados na justificação da proibição destes cães, denominando-os de perigosos e atribuindo-lhes um temperamento agressivo logo à nascença que justifica estas proibições; o que se pode dizer em relação a isto? Muita coisa, mas em primeiro lugar exige sensatez e ter consciência das características destes cães que os pode caracterizar como efectivamente “diferentes” ou “especiais” quando comparados com outras raças. A realidade é que os Pits, como muitas outras raças (que curiosamente não constam das listas de cães potencialmente perigosos), são efetivamente cães que exigem mais dos donos do que propriamente outro tipo de cães. Esta é uma realidade que não deve ser negada e deve estar presente na mente de quem opta por adquirir um destes exemplares.
Esta diferença não se refere à sua predisposição para a agressividade (pois todos os cães poderão ter comportamentos agressivos), mas na força, resistência física e fixação quase obsessiva nos seus objetivos - principalmente neste último aspeto e nas implicações desse tipo de forças internas (drives). São animais que necessitam de muito exercício físico, rotinas estruturadas e um tutor assertivo e coerente, mas principalmente paciente e persistente. Outro factor fundamental para um desenvolvimento equilibrado, senão a mais importante, é a devida socialização, principalmente com outros cães e animais. Esta socialização começa em primeira instância, com a sua mãe e crias, pelo que nunca se devem retirar as crias antes dos dois meses de idade; após isso, o devido contato com outros cães desde tenra idade, para desta forma se ir habituando a interagir de forma saudável com eles. Uma educação coerente também é importante, assim como uma ligação consolidada ao dono. São cães muito leais e se esta relação for baseada na compreensão e cooperação mútuas, farão tudo para “agradar” as suas figuras de referência, a família. Nesta educação desaconselhamos o uso de castigos físicos (como desaconselhamos com qualquer cão); existem muitos donos que não sabem lidar com a agressividade que estes cães apresentam para com outros cães e para os “educar” castigam estes comportamentos, castigam fisicamente sempre que reagem, isto está errado e nunca solucionará o “problema”. Devemos sim, apostar num treino de auto-controlo, ensinar o cão a tolerar a presença de outros cães, a conseguir estar minimamente tranquilo. E isto não se consegue com submissão e com castigos, isto consegue-se, mais uma vez com uma ligação afectiva segura ao dono. E no seguimento deste assunto, surge um outro que muitas pessoas que “defendem” esta raça muitas vezes não o admitem e/ou aceitam. E este assunto melindroso é que: quando escolhemos um Pitbull para nosso animal de companhia, temos de ter sempre presente que a genética pode prevalecer. A verdade é que treino, socialização, educação, etc podem não conseguir sobrepôr-se à genética e a genética destes cães é...lutar. Se existem exemplares extremamente dóceis e sociáveis com outros cães, existem muitos mais que não o são; poderão ser tolerantes com outros cães, mas em situações de conflito, disputa, ameaça, etc, não vão recuar e basicamente o que se passará é que “pode não ser o Pitbull a começar uma luta, mas será ele a acabá-la” (Maria Torres). Não queremos generalizações, claro que não, mas nem para um lado nem para outro. Se existem Pitbulls sociáveis, existem, claro que sim; mas os que tiverem esta genética de American Pitbul Terrier mais apurada, a minha visão é que não será cão para andar solto livremente com outros cães, sem a devida e (extremamente atenta) monitorização de pessoas responsáveis que saibam evitar situações ou em último caso, resolvê-las...e com isto me refiro a saber separar uma briga de cães, porque elas aparecem, às vezes quando menos contamos.
Que leitura podemos fazer desta agressividade para com outros cães, que como já percebemos, está inscrita no ADN. Esta leitura é importante para compreendermos porque motivo não a devemos castigar e por outro lado, porque motivo é tão difícil e até errado querer contê-la ou suprimi-la. Em primeiro lugar, castigarmos um comportamento natural daquele cão, uma tendência genética e/ou biológica é errado, injusto e até presunçoso; e em segundo, ao castigarmos até podemos ter resultados “visíveis”, no entanto, estamos simplesmente a suprimi-la, a recalcá-la e um dia, poderá sair descontrolada sem nos darmos conta - no fundo, criamos uma bomba relógio. Por outro lado e aqui é que reside a chave para compreendermos esta tendência comportamental destes cães, temos de analisar esta agressividade sob um ponto de vista psicobiológico. Os Pits foram seleccionados para lutar, ponto. Pois nesta selecção rigorosa, todos os mecanismos cerebrais foram direccionados para este fim e este mesmo fim, produz adrenalina e prazer no cão. Ou seja, estes cães gostam de lutar; sentem prazer neste comportamento, daí ser tão difícil arranjarmos motivadores externos que façam frente a este motivador interno que se chama adrenalina. Neste seguimento, remeto para uma formação sobre Agressividade canina que fiz este passado Verão de 2015 com Nando Brown - este treinador britânico (recomendo, é dos meus preferidos) tem muita experiência com casos de agressividade e inclusivamente com Pitbulls. Ele usou uma comparação que facilita a compreensão disto. Ele foi durante alguns anos atleta de MMA (Mixed Martial Arts) e muitas vezes lhe perguntavam como era possível ele gostar tanto de ir para uma jaula “andar à porrada” com outros homens; ele simplesmente respondia “because I fucking love it!” - pois bem, com os Pits passa-se algo semelhante.
Quero eu com isto dizer que devemos deixar o nossos cães andar a lutar como forma de satisfazer essa necessidade? Claro que não...embora ache que alguns de vós a ler isto terá este pensamento e daí esta ser uma temática tão sensível. Acho que aí entra mais uma exigência para quem opta por ter um Pitbull: encontrar formas de canalisar esta energia para fins que sejam compatíveis quer com as necessidades do cão, quer com aquilo que é socialmente, mas principalmente, moralmente aceite. Os pitbulls são cães extremamente adaptáveis e imensamente versáteis, não existe nenhuma área de treino ou trabalho a nível de cinotécnia que estes cães não façam por gosto. Obediência desportiva, Agility, Gameness (este desporto nasceu propositadamente para esta raça), Defesa, Busca e Salvamento, Terapia Assistida, Clicker Training, etc, etc, etc. Cada uma destas atividades é uma forma de canalisar as drives que estes cães têm de forma positiva, com especial ressalva que o exercício físico é uma parte fundamental das rotinas destes cães. Cabe a cada dono descobrir o que se adequa melhor ao seu cão, mas também aquilo que mais o motiva e lhe dá prazer.
Uma outra exigência que estes cães poderão ter da parte dos donos, que no fundo não é exigência, mas eu pessoalmente considero crucial, é estudar a história destes cães. Só desta forma conseguiremos compreender de onde vêm estas características, o objetivo das mesmas e a melhor forma de as canalisar e direccionar. Muitas pessoas, que se apelidam de “defensores da raça” gostam de usar afirmações do género “não é como nasce é como se cria”, “o cão é o espelho do dono”, “não existem cães maus, só donos maus”. Acho estas frases de uma tremenda ignorância e injustiça para com os donos de qualquer cão. Muito bem, a educação é importante, o treino é útil, mas...não é tudo. Quando nos dignamos a estudar as origens desta raça, e com isto inevitavelmente o mundo das lutas de cães, começamos a ter uma visão diferente das coisas. Estes mesmos defensores gostam também muito de afirmar que “são cães como os outros”; pois eu não acho que sejam, como um Pastor Alemão não é igual a um Labrador e um Malinois não é igual a um Fox Terrier. A genética conta, dezenas de anos de selecção apurada para um determinado fim deixa as suas marcas, e claro que não, nenhum cão é igual a outro. Depois se acrescentarmos a isto os factores ambientais em que um cão cresce e se desenvolve, aí é que as coisas ganham uma complexidade difícil e mesmo impossível de simplificar com frases tão bonitinhas mas com conteúdo nulo. Uma outra exigência prende-se ainda com a capacidade que teremos ou não de lidar com olhares na rua, ouvirmos bocas por andar a passear um “cão perigoso”, pessoas afastarem as crianças do cão, mesmo quando este se aproxima com aquele ar de que só quer mimo. Sem falar nos gastos económicos extra que temos de ter com estes cães, graças à nossa querida e absurda lei...
Posso dizer que nos últimos tempos, dissuadi algumas pessoas a terem um Pitbull; bastou-me colocar algumas das questões que coloquei acima para as pessoas pensarem duas vezes. E ainda bem que o fizeram, porque a decisão era precipitada e não reflectida. Embora também ache o seguinte: só se conhece verdadeiramente uma raça, depois de termos um exemplar a acompanhar-nos todo o dia...esse conhecimento, só mesmo na prática o obtemos. E se eu achava que conhecia a raça antes de ter a Kaya...depois de a ter, cheguei à conclusão que não sabia nada ou muito pouco ou que as ideias que tinha eram algo romantizadas. Mas foi assim que aprendi e que aprendo todos os dias.
Voltando ao tema geral da agressividade canina, esta não pode ser analisada de uma perspectiva estritamente canina, pois ela é fortemente influenciada pelos comportamentos humanos e ainda mais, pela interpretação que se dá a estes eventos. Esta análise é fundamental e ao longo desta discussão, será fácil perceber o quanto se tem falhado na investigação dos ataques a humanos e a responsabilidade que temos e sempre teremos nos mesmos. Falaremos ainda dos principais mitos associados à raça e que se têm tornado quase conhecimento geral aceite e não questionável.
Para tal, irei-me guiar pelo excelente e exaustivo trabalho desenvolvido por Karen Delise, na sua obra “The Pitbull Placebo: the media, myths and politics behind canine agression”. Nas últimas duas décadas, esta autora analisou exaustivamente a história da agressividade canina e o quanto a mesma tem sido influenciada e posteriormente deturpada por fatores puramente humanos. Os dados e conclusões que aqui coloco não foram descobertos por mim, eles encontram-se neste trabalho desta autora e é neles que me debruço, embora com a minha opinião paralelamente.
Um dos pontos de partida é, que qualquer cão, independentemente da raça, pode em determinadas circunstâncias, apresentar comportamentos agressivos direcionados a humanos. Nós humanos temos seleccionado os cães a nosso gosto ou por simples capricho, no entanto, apesar das características físicas de um cão não poderem ser alteradas após o seu nascimento, as suas características comportamentais continuam a ser evidentemente influenciadas e manipuladas por nós. E se a isto se acrescentar a falta de conhecimento que a maioria das pessoas tem sobre comunicação canina e na interpretação da sua linguagem, então aí, as coisas ainda tomam outras proporções, quase desastrosas eu diria.
Por vezes não existem respostas ou explicações razoáveis para alguns comportamentos caninos e o comportamento de apenas um exemplar ou até de uma centena, nunca poderá ser utilizado para definir o temperamento de uma raça no geral. Poderá não existir uma resposta satisfatória para um episódio de agressividade canina, no entanto, a condenação de uma inteira raça como resultado das ações de um grupo de cães dessa mesma raça é sempre baseado na emoção humana e nunca na história da raça, temperamento e muito menos no longo historial de cooperação e serviço à humanidade.
Constata-se que há um século atrás, existia mais ponderação e objetividade ao se descrever os perigos e contribuições dos cães para a humanidade (através da consulta de artigos de jornais do início do século XX). Atualmente assistimos a uma espécie de histeria coletiva, ofuscada por emoções baralhadas e mitos completamente estapafúrdios. Infelizmente, os Pitbulls não têm sido as únicas vítimas desta histeria e ignorância coletiva; os Pastores Alemães, os Dobermans, os Rotweilers, também já passaram pelo mesmo, com a diferença que a “perseguição” aos Pitbulls parece permanecer no tempo.
A “fórmula” para se criar um cão perigoso é bastante simples, porém a fórmula para se criar uma “raça perigosa” é algo bem diferente, isto porque nenhuma raça é inerentemente perigosa e esta denominação é fruto inteiramente de uma imagem criada por nós humanos. Por exemplo, até à II Guerra Mundial, os Dobermans eram percecionados como óptimos cães de trabalho, dedicados e leais; após a guerra e devido à utilização desta raça pelo exército nazi, a percepção da raça mudou completamente, ficando esquecido toda a contribuição desta raça nas forças especiais norte-americanas, por exemplo.
“O ego humano nunca permitirá alcançar o total conhecimento que os actos terríveis destes cães são o resultado direto da maldade dentro de nós humanos; seja um Bloodhound que é incitado a atacar um escravo, um Doberman a torturar um judeu ou um Pitbull a lutar até à morte com um outro seu igual. Esta perversões humanas do laço humano/cão têm resultado na condenação pública, preconceito e crueldade contra certas raças porque projectando esta culpa para os cães permite-nos distanciar-nos das abominações inerentes à nossa própria natureza”. (K. Delise)
O sensacionalismo das coberturas da comunicação social acaba por ser um “pau de dois bicos”, acabando por ter efeitos contrários àquilo que se quer precisamente evitar. Ao se perpetuar uma determinada raça como “perigosa”, “agressiva”, está-se no fundo a publicitar a mesma raça perante aqueles donos abusivos que pretendem ter os cães para esse mesmo fim - cria-se uma espécie de profecia que se autoconcretiza. Resulta ainda na histeria coletiva que se falou acima, assim como afasta a possibilidade de pessoas com boas intenções quererem obter e cuidar de um cão destes, sem falar no preconceito que os donos destes cães passam quando simplesmente os passeiam na rua.
Além disso, a comunicação social tem deturpado de tal forma os acontecimentos que descrevem um ataque de um Pitbull a uma criança - cão este que estava acorrentado, faminto e não socializado - como o “cão de família”. Os políticos, os media e até alguns “peritos” têm debatido o problema da agressividade canina apenas em relação a um fator: a raça ser Pitbull. Ou seja, as circunstâncias dos ataques não têm qualquer importância, sendo a única coisa importante, a raça. Sem falar que em muitos dos casos nem sequer de Pitbulls se trata, mas se atacou, só pode ser Pitbull.
É uma falácia acreditar que as leis que são aplicadas baseiam-se em dados científicos, teorias atualizadas e verificadas, testemunhos e provas apresentadas por peritos e profissionais na área. A realidade é bem diferente: as pessoas entendidas nestas matérias nunca são ouvidas ou convidadas a expor as suas opiniões. São substituídas pelas notícias dos jornais e nos testemunhos emotivos das vítimas destes acontecimentos. Tivémos um caso bem mediático há um par de anos atrás, o caso do Zico; tanto mediatismo, tanta controvérsia na altura e hoje, como ficou esse caso? Alguém sabe? Alguém teve interesse em saber? Pois parece que não; foi notícia na altura, o culpado foi o cão e ponto final, não se fala mais nisso e todas as pessoas continuam a sua vidinha como se nada fosse; um bebé morreu lamentavelmente e um pobre cão, foi dado como feroz e perigoso e ficou sujeito a uma imensidão de coisas que nem vale a pena mencionar.
Muito facilmente condenamos os cães em vez de assumirmos a responsabilidade pelo seu comportamento o que se torna uma prova bem triste de como nós humanos falhámos e traímos o laço afetivo que os cães têm estabelecido connosco ao longo dos séculos. Enquanto não se deixarem de lado falsos moralismos e afirmações em relação a características anatómicas e comportamentais, e enquanto não se analisarem a fundo as circunstâncias em que determinado ataque ocorre, o tema da agressividade canina nunca será abordado de forma verdadeiramente útil na procura de soluções e na aplicação de comportamentos preventivos de forma a se diminuírem ou irradicarem estes ataques (e todos os outros).
MITOS associados à raça Pitbull - alguns deles verdadeiramente hilariantes
- o maxilar que tranca;
- força do maxilar superior a qualquer outro cão;
- reações hormonais, desequilíbrios químicos, tamanho do cérebro;
- ataque equivalente a um ataque de tubarão;
- constituição da dentadura semelhante a um tubarão;
- incapacidade em sentir dor;
-atacam sem aviso;
- bombas relógio;
- atacam de forma distinta de qualquer outra raça;
- quando mordem, não largam;
- temperamento imprevisível.
Estes são os principais mitos que ao longo dos tempos têm surgido; todos eles falsos, chegando a roçar o ridículo. Se se proceder a uma análise das características fisionómicas destes cães, em muito pouco diferem de todas as outras raças de cães. Começando pelo “maxilar que tranca”, sendo o mito mais conhecido e mais aceite entre a população geral; de facto, as características anatómicas dos maxilares dos Pits revelam que este não se tranca, que não existe nenhuma alavanca xpto nos seus maxilares que permita tal truque anatómico, isto simplesmente é uma mentira pura. O mesmo se passa na relação que se estabelece entre o maxilar de um Pit e um tubarão; este é possivelmente o mito mais ridículo. De facto e começando apenas por aí, é completamente irrealista estabelecer uma comparação entre a anatomia e funcionamento de um mamífero com a de um peixe cartilaginoso, seja ele qual for; é uma comparação sem sentido e diria mesmo, completamente aparvalhada.
No que se refere aos desequilíbrios químicos e hormonais, estes poderão acontecer em qualquer espécie ou raça, não sendo específicas dos Pits e acontecendo em casos excepcionais. Estas alterações ou desequilíbrios poderão ou não desencadear agressividade – ou seja, não são sinónimo da mesma.
A tolerância à dor – outro mito comummente relatado e defendido e que também ele é errado. Esta não é uma característica desta raça; existem exemplares mais tolerantes que outros, como em qualquer outra raça. A sua robustez física torna-os mais resistentes, isso sim, mas não intolerantes à dor.
O facto de “atacarem sem aviso” revela a incapacidade que maioria dos donos/humanos têm em prever e ler o comportamento canino, e aqui sim, reside o grande fator responsável e explicativo dos ataques a humanos. Nenhum cão ataca sem aviso, nenhuma raça ataca sem antes ter já dado alguns sinais de agressividade, que foram escalando. Mesmo nos segundos prévios a um ataque existem sinais claros desta escalada na agressividade.
Então afinal, em que difere um Pitbull dos outros cães? Na realidade, em muito pouco. Mesmo as diferenças que se identificam, não são exclusivas da raça, uma vez que existem outras dezenas de raças com características semelhantes. Julgo que a principal característica destes cães que difere da maioria se trata no fundo de questões temperamentais, mas que são perfeitamente adaptáveis, se fizermos o esforço para lidar com elas de forma positiva. A persistência na tarefa e no objectivo é uma das principais características destes cães, o que pode ser também denominado de tenacidade, combatividade, focalização quase obsessiva. Esta sim é uma característica exigente de se trabalhar e aprender e ajudar o cão a canalisá-la de forma adequada. Na minha opinião, é a este nível que estes cães são exigentes para quem os tem - mas valem a pena o esforço porque são cães verdadeiramente fenomenais.
Relativamente aos factos sobre os ataques a humanos (no geral e não somente em relação a esta raça) temos o seguinte:
- Apesar de haver registo de ataques de cães vadios a gado ou outros animais, ataques a humanos deste tipo de cães são extremamente raros; logo, cães vadios não atacam, mas os cães com donos atacam…qual o vector que existe num caso e não noutro? A proximidade e presença constante de um dono - pessoa e/ou pessoas.
- Cães não socializados. E quando digo socialização não me restrinjo a interacções com outros cães. A socialização vai muito além disso; pessoas, animais, barulhos, cheiros, estímulos no geral. Um cão que não esteja socializado, mais facilmente terá respostas agressivas quando na presença de algo que desconhece.
- Cães que vivem 24 horas por dia, 7 dias por semana presos numa corrente ou num canil pequeno; todos os seres vivos que estejam confinados não são saudáveis e muito menos felizes e equilibrados.
- Cães que são mal-tratados fisicamente ou fortemente negligenciados.
- Cães treinados para ataque.
Na grande maioria dos casos de ataques a humanos, uma destas circunstâncias acima descritas, ou até mais do que uma, se registava. Apesar das descrições da comunicação social nunca referir estas questões, ao se analisar os ataques, encontra-se sempre uma destas circunstâncias.
Os cães de guarda ou com treino para ataque, por exemplo, representam uma grande percentagem nos ataques a humanos e porquê? Porque esperamos que eles consigam diferenciar um ladrão de um vizinho ou de uma criança que por ali passa no momento em que o portão do seu território se abre. Ou seja, esperamos que os cães saibam identificar o perigo segundo os nossos padrões morais e humanos; tal não é, obviamente possível.
Cães que vivem acorrentados ou presos representam uma grande percentagem dos ataques também. O instinto de liberdade é uma das necessidades básicas dos cães. Viver acorrentado significa por si só uma pobre ou inexistente socialização, assim como a impossibilidade do animal fazer exercício físico, uma outra necessidade básica. Logo não é difícil de imaginar que um cão acorrentado, quando solto acidentalmente, poderá muito facilmente atacar a primeira pessoa ou animal que encontrar e penso que o motivo não será difícil de compreender.
A condenação dos cães com tamanha facilidade transparece o quanto falhámos e traímos a relação que estes animais tão especiais estabeleceram connosco ao longo dos séculos. Não é mero acidente que os Pitbulls sejam considerados “perigosos”, “diferentes” ou que sejam estupidamente comparados a tubarões; trata-se no fundo de um estratagema psicológico, uma defesa mental criada por nós humanos que tem sido usada há décadas para nos afastar da verdadeira responsabilidade que temos e para justificar o mau-trato, abandono e a criação de leis preconceituosas e abolicionistas em relação a determinadas raças.
Enquanto não se deixarem as afirmações falsas, relativas a questões anatómicas e comportamentais, enquanto não se analisarem a pente fino as circunstâncias que contribuem para os ataques de cães, a agressividade canina nunca poderá ser abordada de forma a que surjam soluções viáveis e medidas preventivas para diminuir os números destes ataques. As soluções para a agressividade canina estão condenadas ao falhanço se persistirem em se basear em factos não científicos, assim como em descrições e soluções puramente baseadas na emoção humana, que é o que fundamentalmente resume as descrições dos ataques atuais, assim como a legislação existente no momento em variados países a nível mundial.
Se por fim, tivesse de dar uma resposta ao título deste artigo diria: a origem dos mitos e de todo este preconceito que foi crescendo tipo bola de neve reside em algo muito simples: a ignorância e nada mais, nada menos do que isso. E sabemos o quanto a ignorância e a estupidez podem ser perigosas e destrutivas; a História da humanidade está repleta de exemplos, assim como a própria actualidade, em pleno século XXI.
Referências Bibliográficas:
-“The Pitbull Placebo: the media, myths and politics behind canine agression”, Karen Delise, 2007.
- The humaine society of the USA.
- “The lies, damn lies and statistics behind dog bites”, Steffen Baldwin, 2015.


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