Sobre as coleiras eléctricas

Sobre as coleiras eléctricas

Em Portugal, não existe qualquer legislação que proíba o uso destas e outras ferramentas coercivas de treino – tal como as coleiras estranguladoras e de picos que são amplamente usadas por treinadores, tutores e até elementos das forças policiais, assim como em nome do treino de cães de Terapia e Assistência. Mas partindo do pressuposto que a profissão de Treinador de Cães não é regulamentada em Portugal, como podemos esperar que as ferramentas dessa mesma profissão sejam fiscalizadas?

A base de todas estas ferramentas é a mesma e todas elas se podem adquirir em lojas para animais e grandes superfícies, sem qualquer controlo da venda e da utilização. Infelizmente, ainda se usam muito no nosso país e chegam até a ser recomendadas por veterinários - o que é grave e altamente contraditório.

As coleiras eléctricas vêm em várias formas e funcionamentos e são-lhes dadas vários nomes (E-Collar, Coleira de Treino, Coleira de Correção, Coleira de choques, etc). Funcionam na base da punição / castigo físico de um determinado comportamento que aos olhos do tutor ou treinador é visto como indesejado e se pretende suprimir / extinguir. No momento em que o cão apresenta esse comportamento, é accionado um impulso na coleira. Este impulso pode ser apresentado de várias formas: choque eléctrico (voltagem), vibração, emissão sonora, esguicho de citronela. Estas coleiras variam no tipo de impulso que têm, na intensidade, e podem ser activadas por controlo remoto ou por sensor existente na coleira, sendo alimentadas por pilhas ou baterias. Na activação automática funciona perante um determinado "ativador" (latido por exemplo).

Na utilização por controlo remoto, a pessoa ativa o choque no momento em que o cão apresenta um comportamento indesejado. Um exemplo muito comum é o treino do "andar em junto" - guiando o cão pela trela, encostado à perna, sempre que o cão se afasta leva um choque - com este "treino" temos cães que passeiam sem trela, encostados à perna do tutor, sem se afastarem, sem cheirarem, sem explorarem..sem no fundo, serem cães! (E muitas pessoas vêem estes cães e ficam "maravilhadas", sem saberem o que está por detrás daquele cão "exemplar".) 

Os efeitos destas coleiras podem ser diversos e estão comprovados como maioritariamente prejudiciais para os cães. Várias entidades internacionais oficiais já se posicionaram com vários estudos científicos sobre o assunto, expondo os efeitos destas coleiras e desaconselhando fortemente a sua utilização.

O problema dos efeitos a curto prazo é que são ilusoriamente interpretados como eficazes, mas comprometem o bem-estar do cão em muitos sentidos e pode mesmo agravar os comportamentos já existentes como criar novos. Dão a ilusão da eficácia, porque efectivamente o cão pode deixar de apresentar determinados comportamentos no momento, mas as associações que faz dos mesmos e as consequências podem ir muito além do comportamento inicial identificado. "Funcionam" porque o cão associa o comportamento a um determinado estímulo desagradável (ou até doloroso) e vai diminuir a sua manifestação por antecipar a consequência.

Por exemplo, um cão que foge pelo portão - dá-se o choque nos momentos em que tenta fugir e isto interrompe a fuga - a partir daquele momento, aquele cão deixa de se aproximar do portão por medo de sentir o choque novamente e porque o associa àquele local específico. Isto pode ser visto como a solução de um problema, no entanto, aquele cão deixou de se aproximar do portão não por ter aprendido que não deve fugir, mas por medo do que lhe pode acontecer no momento em que se aproxima - escusado será dizer que sempre que se quer sair de trela para passear, o cão recusa-se a passar aquela área - desenvolveu um medo tremendo daquela zona específica da casa. Para algumas pessoas isto pode ser visto como um pormenor porque "resolveu" o problema; na minha opinião, não é um pormenor, mas um importante fator a ter em conta. Para o mesmo exemplo, podemos ter ainda outros efeitos possíveis - esse mesmo cão, quando sentir o primeiro choque, pode ficar de tal forma desorientado que foge pelo portão, anda desaparecido uns dias e pode aser atropelado, etc. Todas estas consequências têm de ser tidas em consideração e sendo elas tão variadas e imprevisíveis, o risco a meu ver, é demasiado.

Os defensores destas coleiras costumam exemplificar colocando a coleira no próprio pulso e demonstrando que os choques, mesmo no grau mais elevado é tolerável. Aquilo que se esquecem (ou ignoram) é que existe algo que nós humanos possuímos mas os cães não - consciência. Nós vamos ter consciência de onde vem o choque, o porquê de ele estar a ser sentido, os efeitos fisiológicos do mesmo, etc - o cão jamais terá esta capacidade e a tendência será para generalizar aquela sensação ou estabelecer associações variadas e imprevisíveis em relação a um determinado comportamento e/ou contexto. Outro factor que nos diferencia e que as pessoas ignoram é que os cães têm um nível de sensibilidade muito superior ao nosso, além de que uma descarga elétrica no pescoço terá efeitos fisiológicos e até neurológicos muito diferentes.

No fundo, esta(s) ferramenta(s) atuam ao nível do sintoma (comportamento visível) e não na causa do comportamento, daí a sua eficácia ser cientificamente questionável, além de que sujeitamos o cão a algo desagradável, que pode ser doloroso e logo, compromete o seu bem-estar.

Como fundamenta Roberto Barata: “se o objetivo destas ferramentas não fosse causar algum tipo de desconforto, nunca seriam usadas. Na década de 60 estes materiais começaram a ser utilizados para o treino de cães de caça, sendo que nos últimos 30/40 anos foram adaptados inicialmente para treino operacional e posteriormente em treinos sociais e alargados a outros materiais, como as coleiras anti-latido e as cercas elétricas. Em 1980 o uso das coleiras anti-latido foram denunciadas como perigosas para a saúde e bem-estar dos cães; existem inclusivamente desde 2003, vários estudos comparativos que mostram os efeitos a médio e longo prazo deste tipo de modificação comportamental coerciva. Em causa não está a eficiência destas ferramentas (eu próprio as utilizei há 15 anos), mas sim o bem-estar dos animais e a desresponsabilização dos donos em criarem uma ligação mais natural de respeito e compreensão como o seu animal de companhia. O conhecimento científico que existe atualmente torna o uso destes materiais obsoleto, pelo que se torna um contra senso serem ainda tão utilizados e de fácil aquisição. A maioria do treino efetuado em problemas comportamentais é apresentar o estímulo para o cão reagir e o choque pretende inibir esse comportamento. O processo de aprendizagem é mais complexo do que as soluções rápidas e depende essencialmente do envolvimento dos detentores e não de soluções milagre que mais se assemelham a varinhas mágicas (que não existem). Já o argumento da “extinção” não faz muito sentido nesta situação a partir do momento que, em condicionamento operante, a extinção acontece devido à remoção do reforço e não com a apresentação do inibidor positivo (popularmente conhecido como castigo) como é dito, havendo sempre a possibilidade de um “ressurgimento” e muitas vezes aumenta a frequência da agressão. Esta também envolve vários factores e variáveis essencialmente de controle e gestão ambiental, algo difícil numa sociedade humana. Basta um pouco de estudo na literatura científica sobre a teoria da aprendizagem para desmistificar algumas dessas anedotas populares. ” (2018).

Na ConectaCão não recomendamos e muito menos as utilizamos. Os possíveis efeitos adversos são tantos e podem ser tão perigosos que a nossa ética profissional não nos permite sequer equacionar o uso destas coleiras. Sem falar que se trata de uma forma de mau-trato animal grave a nosso ver e esse é o principal ponto de partida para não as aceitarmos como método de treino. 

Preferimos utilizar abordagens que tenham em consideração o ponto de vista do cão, a origem do seu comportamento e acima de tudo, formas de em cooperação e respeito pelo cão e a sua natureza, se encontrem formas de tutor e cão viverem com o máximo de qualidade de vida (e de relação) possível.

Queremos igualmente acreditar que estamos numa época de mudança de paradigmas e que, aos poucos, cada vez mais pessoas se afastam destes métodos de treino, não somente por colocarem em risco o bem-estar dos nossos cães, mas porque no fundo, revelam uma grande falta de respeito por aqueles que apelamos de nossos "melhores amigos".

Cuidar é respeitar e compreender, e antes de castigarmos o que quer que seja nos nossos cães, temos de estar disponíveis para compreender o porquê de manifestarem determinado comportamento e, em conjunto, encontrar alternativas mais aceitáveis e "humanas" de coexistência. 

Somos seres humanos, dotados de capacidades mentais e emocionais superiores à maioria das espécies - mas para merecermos esse título de "superioridade" temos de ser coerentes na forma como tratamos os nossos animais e defendo que temos quase que como um dever evolucionário para com os cães - eles merecem.



;